Em trinta e cinco anos , como artista plástico, na busca de elementos com os quais pudesse melhor traduzir as fantasias do menino Chiquinho, mais tarde os sonhos do jovem Francisco e, finalmente suas emoções e sensações de adulto, Fransoufer experimentou óleo sobre tela, guache, aquarela, acrílico sobre duratex, até tinta plástica, colagens e óleo espatulado, retornando na maturidade, à sua técnica original.
No início da década de 1970, ainda no Maranhão como Francisco Sousa Ferreira, tentava passar para a tela as fantasias que povoavam a sua imaginação de menino pobre da Baixada. Sem saber, assumia o Surrealismo, movimento artístico lançado na França na década de 1920 e que se caracterizava pela expressão espontânea e automática, regrada apenas pelos impulsos do inconsciente. Esse movimento cultural que teve grandes expressões como André Breton, Salvador Dalí e De Chirico, proclamava a prevalência absoluta do sonho, do instinto, do desejo, inspirado pela Psicanálise. Só que naquela época o jovem Francisco não sabia nada sobre isso, porém produziu dezenas de telas sobre seres extraterrestres, alienígenas fazendo contato com a Terra, catedrais estratosféricas e outros temas.
Mais tarde, em Brasília, a Meca dos nordestinos e outros brasileiros que não se tornaram profetas em seus Estados , e com a ânsia de conhecer lugares novos e outros artistas que usassem essa mesma linguagem, tornou-se amigo do pintor Jô Campos que o orientou na busca de um estilo diferente, mais compreensível e aceitável pelos seus conterrâneos, que ele acreditava serem potenciais compradores. O nome, também, não era midiático: Francisco, muito comum e banal, por certo não atrairia os admiradores das Artes Plásticas. Foi quando ele passou a adotar o nome FRANSOUFER (junção de Francisco Sousa Ferreira), profissionalizou-se, não mais pintando por diletantismo. Nome novo, estilo diferente: cenas do folclore maranhense que ainda povoavam as recordações do jovem artista, afloravam à sua memória, evocadas, em grande parte, pela saudade de sua gente.
Datam dessa época suas primeiras exposições, inicialmente coletivas com outros jovens artistas, mais tarde individuais, realizadas em Brasília e Goiânia.
De volta ao Maranhão, em 1977, conheceu o pintor húngaro Nagy Lajos que iria influenciar decisivamente na carreira do jovem pintor, ensinando-lhe o manusear do pincel e da espátula, a dosar as cores, a usar a luz, a desvencilhá-lo das formas anatômicas , atreladas ao estilo clássico e libertá-lo das amarras das escolas, seguidas pelo maioria dos colegas maranhenses, adotando um estilo próprio através do qual pudesse melhor expressar-se.
Rendendo-se, no entanto, às suas origens, Fransoufer aprendeu a técnica mas não substituiu os temas, passando a retratar cenas guardadas na sua memória e que marcaram a sua infância no Mojó, povoado do município de Bequimão, iniciando o figurativismo regional ao qual se mantém fiel, até hoje.
São desse período: as procissões de romeiros, os casamentos na roça, os violeiros, os vendedores de pamonha, de derressol, os empinadores de pipas, os boizinhos,os vaqueiros transvestidos de cangaceiros, os tocadores de viola.
O estilo delineava-se através de cores frias, sóbrias e esmaecidas, revelando um artista ainda tímido, introvertido. As figuras apresentavam o rosto vincado, traduzindo todo o sofrimento do nordestino, no trabalho áspero, estafante e mal remunerado de lavrar a terra e nem sempre colher os frutos esperados. Os olhos assustadoramente arregalados e o nariz grosseiramente triangular, eram a sua marca registrada.
No fim da década de 1970, o pintor encontra a sua companheira e expressa os seus sentimentos, pintando mulatas opulentas com turbantes coloridos, olhos brejeiros, lábios sensuais, numa explosão de cores e formas. São, também, dessa época os frades e freiras, retratados na intimidade dos claustros, ponto de partida para a sua fase franciscana.
A década de 1980 revelou um pintor mais criativo, ousado, produzindo uma das fases mais interessantes da sua trajetória: as colagens, elaboradas com chitas floridas de cores fortes, cobrindo os couros dos bois, principalmente o Boi do Portinho no qual seu pai, João Grande, tocava zabumba; às vezes de finíssimas rendas que guarnecem as almofadas das rendeiras da Praia da Raposa, praia onde costumava recolher-se em busca de inspiração.
Os traços foram tornando-se mais delicados, os vincos faciais desapareceram, o nariz ficou reduzido e os olhos ligeiramente entreabertos. Nessa fase o artista reproduziu, com requinte, as riquezas do Maranhão, introduzindo o dourado no acabamento dos cachos de babaçu, de tucum, de juçara, das pencas de bananas, nos adornos dos brincantes de bois e nas dragonas dos militares, que nesse tempo ainda mandavam no País.
No fim da década, já amadurecido, divulgado pela mídia como senhor de um estilo próprio e inconfundível, Fransoufer deixa emergir todas as emoções refreadas durante os anos de privações materiais. Nesse ponto a sua trajetória pessoal influencia o seu processo criativo refletindo-se, positivamente, na qualidade dos seus trabalhos. Na medida em que como cidadão ia adquirindo estabilidade material, afirmando-se socialmente, como artista deixava correr solta a sua imaginação que se reproduz em dezenas de obras expostas em galerias oficiais e particulares das principais cidades brasileiras.
A partir de então, Fransoufer se divide entre o seu atelier em São Luís e um instalado em Brasília, mais perto dos centros consumidores do Centro-Oeste, do Sudeste e do Sul. As exposições individuais se sucedem em Brasília, Goiânia, Cuiabá, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Belém, Teresina, São Luís, Imperatriz. Nas coletivas que participa recebe premiações (medalhas de ouro, prata e bronze) e até no exterior (Bruxelas) recebe menção honrosa. Foi efetivamente um período decisivo na carreira do pintor, cujas obras passaram a fazer parte do acervo de colecionadores de quase todo o País e, também, de instituições oficiais.
Com a carreira consolidada, São Francisco começou a ser uma constante na obra de Fransoufer. O Santo arrancado da sua Assis, na região da Umbria (Itália) passou a figurar em todas as mostras do pintor que o trouxe para os trópicos, ambientando-o no Nordeste, principalmente na Baixada Maranhense onde é visto sempre à vontade, em cores fortes, ora salvando os animais em extinção, ameaçados pelas queimadas, levados pelas enchentes, ora protegendo-os da sanha dos caçadores.
O ambiente do sertão é caracterizado por um sol avermelhado e muitos mandacarus cujos frutos e flores atraem gafanhotos, libélulas e borboletas. Quando retrata a Baixada o fundo é representado por campos verdes ou alagados, cobertos de aguapés, junco, algodão e mururus, exibindo, orgulhosamente suas hastes com flores lilases, em torno das quais circulam livremente marrecas, japiaçocas, jaçanãs, socós, búfalos e até caramujos. Outras vezes o Santo é retratado conversando com pássaros regionais, com peixes e até encantando cobras. Em outros quadros aparece tocando gaita, flauta, corneta, banjo, tambor e até pandeiro e sanfona.
Nos quadros de Fransoufer os animais parecem ganhar vida própria, quase que saltando sobre o expectador.
Outros santos também aparecem em sua obra: São João, São Jorge, São José, São Cosme e Damião, Santo Antônio, Santa Clara, a Sagrada Família e outros geralmente pintados sob encomenda. Também vemos anjos cavalgando antas, capivaras e pacas e até figuras carnavalescas. As ceias, belíssimas, presididas por Cristo que ora se veste como vaqueiro, ora como cacique, fazem, também, parte dessa fase e constituem os temas preferidos. O vinho é geralmente substituído por água contida em quartinhas de barro , cuias ou cabaças e o pão cede lugar a uma variedade de frutas regionais as quais o artista confere não só a cor, mas um sabor todo especial: mangas, cajus,ingás, oitis, jatobás, tuturubás, jacas, ananases, bacuris, jenipapos, sapotis, piquís, carambolas, abóboras, se esparramam em profusão sobre mesas toscas, cobertas com toalhas guarnecidas com rendas da Raposa, ou simplesmente por jornais de circulação local.
Nessa fase as figuras têm nariz reduzido a um simples traço, permitindo que destaque maior seja dado aos olhos oblíquos, parados, mas muito expressivos. O artista se permitiu algumas concessões e pintou naturezas mortas, retratando flores silvestres, nativas da Baixada.
Na década de 1990 a cromática fora a maior preocupação do artista. As cores ainda fortes são melhor trabalhadas. O uso de tons” degradées” conferem uma maior dimensão e profundidade aos detalhes. Os traços fisionômicos, reduzidos, simplificam as figuras que raramente apresentam braços, como ex-votos, ou somente as mãos são visíveis.
Nessa época o pintor realizou duas viagens de estudo na Europa. Na primeira visitou os Museus do Prado em Madrid, o Louvre em Paris, oportunizando conhecer as obras de grandes pintores e escultores mundiais, principalmente as cerâmicas de Pablo Picasso, resultando, dessa viagem mais uma nova vertente em sua trajetória artística. Também visitou museus em Lisboa, no Vaticano, Milão, Nápoles e outras cidades italianas, inclusive Pompéia. Na segunda viagem, mais demorada, passou um mês em Londres, expondo desenhos elaborados durante a sua estadia, na Galeria Embassy da Universidade de Wimbledon. Visitou, também, a Escócia e Viena, na Áustria.
Totalmente fascinado pelas esculturas de Picasso, na sua volta para o Maranhão, demorou-se dois meses no Rio de Janeiro, freqüentando o atelier de cerâmica da escultora Mônica Kuhner, onde produziu suas primeiras modelagens em cerâmica.
Montou em seu sítio Canaã, município de Bequimão uma oficina para trabalhar com o barro de sua terra, agregando um grupo de jovens que também se encantaram com a possibilidade de serem artistas plásticos, formando o grupo Cerâmica Jaburu. Muitas peças foram produzidas e vendidas em lojas de artesanato de São Luís e em exposição no Shopping São Luís.
Nessa época, convidado para ser o titular da Secretaria de Cultura do seu município desenvolveu, às suas custas, sem apoio material de fontes oficiais, mais quatro projetos:
- Incrementar a confecção de redes de teares, tentando resgatar uma pequena manufatura local. Sem apoio algum, ainda chegaram a ser produzidas 40 redes.
- Tapeçaria – técnica aprendida no Rio de Janeiro e aqui desenvolvida por mulheres moradoras de áreas de invasão. Dezenas de tapetes foram confeccionados e expostos na Galeria do SESC, e no Shopping São Luís.
- Diversificação da produção de cerâmica em áreas de quilombolas, dos municípios de Bequimão e de Alcântara, em áreas já produtoras de objetos utilitários de barro, como potes, alguidares, fogareiros, urinóis, etc. Os ceramistas aprenderam a modelar objetos de decoração.
- Confecção de peças decorativas (jarros, flores, copos, ventarolas), a partir de garrafas pet, descartáveis.
Após várias tentativas frustradas para fazer algo por seus jovens conterrâneos, para mantê-los afastados das drogas, principalmente da comercialização das mesmas, passou um mês nas matas do rio Jaburu, em um tijupá por ele construído com palhas de babaçu, alimentando-se, exclusivamente de peixes por ele apanhados, ovos, granola dissolvida em leite em pó e frutos silvestres, como camapus, araticuns, marias-pretinhas, murtas, muricis. Místico, supersticioso, tomou essa atitude para purificar-se de influências adventícias e espúrias que estavam interferindo em sua criatividade artística. Após esse período, voltou ao convívio civilizado, fortalecido, energizado e pronto para recomeçar a produzir uma nova série. Além de livros sobre História Universal, levou, também, livros sobre Mitologia e uma filmadora.
A sua nova produção , enriquecida pelos deuses do Olimpo, ninfas, harpias, faunos, sátiros e outros elementos que integram o universo onírico, se encontra à venda em seu atelier no bairro Sítio Leal.
As suas obras, estão, também à venda no Sebo Papiros do Egito e no Restaurante Maracangalha e em São Paulo na Galeria Rodrigo Paisin.
Simples, despojado de vaidades e destituído de ambições, Fransoufer já foi tema de monografias, teses, documentários, capítulos de livros sobre Cerâmica no Nordeste, Artes no Brasil, Artes no Maranhão. Faz parte, como membro correspondente da Academia de Letras e Artes de Paranapuã, no Rio de Janeiro.
A Telemar em 2000 selecionou dez obras suas, reproduzidas em 2 milhões de cartões telefônicos, com uma tiragem de 200 mil de cada quadro.
Em todos esses anos, a preservação da natureza tem sido a proposta de Fransoufer, convidado em 1980, para abrir a Semana do Meio Ambiente com uma mostra realizada no saguão da agência do Banco Central, promovida pelo Ministério de Minas e Energia, sendo-lhe concedido o Escudo de Prata, pela postura pacifista adotada, portanto, alguns anos antes da onda pró-ecologia que ora sensibiliza os brasileiros.
Com seu pincel, Fransoufer, muitas vezes criticado pelos colegas por fazer uma arte limpa, descomprometida com o caos atual, consegue com muita habilidade e a mesma simplicidade e despojamento, do seu homônimo o “povarello” de Deus, pregar o seu evangelho de paz, amor e esperança.
São Luís, 17 de agosto de 2011
Moema de Castro Alvim – livreira e membro fundador da APLAC
Seu texto é um magnífico sobrevôo pela arte do preclaro Fransoufer, Moema.
ResponderExcluirMesmo sem as telas diante dos nossos olhos, basta-nos viajar nas linhas do seu artigo para termos diante de nós, como que materializadas num passe de mágica, ou melhor, de milagre franciscano, a grande arte de Fransoufer.
Mais uma vez, parabéns pelo texto que tão bem traduziu o espírito do nosso artista da Baixada que, parafraseando o poeta, é universal justamente por "cantar" em belas cores e formas sua aldeia!