”As pessoas que eu nomeio são pessoas que existem, os fatos que estou contando vossa memória esqueceu”. Jorge de Lima
II PARTE – O Largo ou Arraial
Durante o ano tínhamos muitas festas religiosas, resquícios da resistência das camadas populares no âmbito das crenças religiosas, às vésperas das grandes mudanças sociais que se processariam no mundo, a partir da segunda metade do século XX, com reflexos nas práticas sociais e no cotidiano da vida comunitária de uma pequena cidade em formação, onde se travava uma luta surda entre a cultura letrada dos padres italianos pertencentes à Ordem Missionários do Sagrado Coração, chegados em Pinheiro em 1946, e a cultura popular, cujas manifestações privilegiavam a religiosidade herdada dos primeiros moradores. Os padres começaram a desagradar a população quando extinguiram os festejos de São Benedito, comemorados na Matriz durante o Natal, transferindo-os para outro local e data, passando, a partir daí a realizar-se a Bênção do Santíssimo. Depois a retirada dos santos do altar-mor, substituindo-os por uma cruz, abolição de algumas manifestações como as ladainhas, ritos como o dobre do sino quando algum morador falecia e outras pequenas mudanças que não estavam agradando a população. Para evitar maiores animosidades os padres mantiveram a Festa do Divino, os Pastorais. Também foram mantidos os festejos de São Sebastião no dia 20 de janeiro, o mês Mariano com a coroação de Nossa Senhora no dia 31 de Maio, as festa do Padroeiro em 31 de julho e a de São Raimundo em 31 de agosto. As festividades em homenagem a São Benedito foram transferidas para uma igrejinha reconstruída na antiga Praça da República, atualmente Praça de São Benedito, onde os fiéis podiam, sem a censura dos padres, curtir o tambor de crioula.
Porém a festa mais aguardada por toda
a população era a de Santo Inácio, Padroeiro da cidade que se realizava
no dia 31 de julho, dia em que o jesuíta faleceu em 1556, com 65 anos
de idade.
No ano de 1958 a festa fora planejada com muita
antecedência, elegendo-se a Comissão Organizadora da Festa,presidida por Orzete Amorim, subdividida
em várias outras: uma encarregada de arrecadar fundos para os
festejos era formada por moças e senhoras que sairam nas ruas, pedindo
no comércio, dinheiro e prendas para o leilão. Antigamente era
acompanhada por alguns músicos e anunciada pelo pipocar dos foguetes.
Durante nove dias foram rezadas ladainhas na Igreja, sendo que cada
noite fora de responsabilidade de uma classe trabalhadora ou Associação
Religiosa: comerciantes, comerciários, pecuaristas, agricultores,
barqueiros, pescadores, associados do Círculo Operário, funcionários
públicos e das associações religiosas: Vicentinos, Filhas de Maria,
Zeladoras do Sagrado Coração e até dos estudantes. Cada uma dessas
classes esmeraram-se em tornar a sua noite a mais festiva, animada e
rendosa. Os objetos mais valiosos foram destinados a rifas que “corriam”
na noite da novena da comissão que os ganhara. O largo fora decorado
com bandeirinhas e argolas de papel de seda e arcos de pindoba. Nos
dois lados da igreja, Dedeco Mendes e Orzete Amorim construiram os seus
botequins com bebidas geladas, quentes e tira-gostos. Em frente a essas
estruturas com paredes e coberturas de palha, montaram mesas e cadeiras
dobráveis para os freqüentadores. Os mais assíduos eram Nadico, Gomes,
Leopoldo, Santinho, Josué Azevedo, Edmilson, Mário Castro, Ubaldino
e Zé Pessoa, Zezinho, Joacy, Gregório, Alberto,e Claudionor, Rafael Soares,
João Castelo, Zé Veloso que geralmente ficavam no Dedeco,
enquanto o pessoal do bairro da Matriz, Baril, Esmeraldo, Dico Aroucha,
Floriano, os irmãos Congo e Inácio Sá, Inácio Ribeiro, Wilson Peixoto,
Zé Peixoto que não perdia uma só festa de Santo Inácio, preferiam ser
atendidos por Adalberto Amorim que dava uma mãozinha para o irmão.
Nessas noites promoveram-se pequenos leilões, queimaram-se foguetes,
instalando-se um serviço de alto-falante comandado por Hildebrando Reis
com as indefectíveis mensagens ("de alguém para alguém
com muito amor") e os inesquecíveis programas de calouros. Aymoré, Inacinho Castro, Glorinha Aroucha foram grandes atrações, cantando El reloj, Oh! sol e Banho de lua, respectivamente. Até Niedja, Edméa e eu, organizamos um trio e cantamos nesse ano.A música ensaiada várias vezes não dera certa e nós cantamos, em separado, outras músicas: Contigo en la distancia, Suave é a noite e eu cantei de costas para a platéia Ouça de Maysa.Entre 21:00h e 21:30h, os jovens e senhoras voltavam pra suas casas, enquanto os homens permaneciam nos botequins para a “saideira”.
com muito amor") e os inesquecíveis programas de calouros. Aymoré, Inacinho Castro, Glorinha Aroucha foram grandes atrações, cantando El reloj, Oh! sol e Banho de lua, respectivamente. Até Niedja, Edméa e eu, organizamos um trio e cantamos nesse ano.A música ensaiada várias vezes não dera certa e nós cantamos, em separado, outras músicas: Contigo en la distancia, Suave é a noite e eu cantei de costas para a platéia Ouça de Maysa.Entre 21:00h e 21:30h, os jovens e senhoras voltavam pra suas casas, enquanto os homens permaneciam nos botequins para a “saideira”.
Entretanto, o auge da festa fora a
noite do dia 31, após a procissão. A cidade toda era uma explosão de
animação e alegria que se irradiavam do Largo e se refletiam no
semblante dos pinheirenses e visitantes de outras plagas. Já a postos,
as doceiras com seus tabuleiros de doces e outros quitutes: as mais
antigas com o seu ponto cativo, trouxeram de casa uma mesinha onde
expuseram as guloseimas e sentadas num banquinho atendiam os
compradores. As mais novas circulavam pelo largo com o tabuleiro na
cabeça e um tamborete na mão, usado na hora da venda. As mais afamadas
eram: d. Emília, as Amorim, Virgínia Sessenta e umas senhoras pretas,
altas, do bairro do Sete que vendiam inigualáveis corações recheados com
doce de coco. As guloseimas vendidas pelas demais doceiras eram:
não-me-toque, suspiros, mães-bentas, papos de anjos, pastilhas feitas
com essência de hortelã e de rosas, pedaços de bolo de tapioca, de
macaxeira e outros sequilhos.
Para as crianças foram armadas
barracas de pescarias de pequenas prendas e outros folguedos. Também
foram vendidos balões de cores, tamanhos e feitios variados.
Às
20:00h começou o footing: os rapazes parados, geralmente em pequenos
grupos e as moças, de braços dados pra lá e pra cá, olhando por baixo da
sobrancelha, de esguelha, na esperança de serem notadas pelo eleito e a partir daí
engatar um namoro. Não se chamava “paquera”e sim flerte. Nos poucos
bancos de cimento disponíveis ficaram os casais de namorados: Zé Soares e
Gilma, Edmir e Darly, Raimundinho e Maria Célia, Teixeira e Helena, José
João e Reginalda, Lauro e Dijica, Nair Amate e Bentinho. Dividindo o
mesmo banco, ficavam dois casais de costas um para o outro.
E o
burburinho aumentara quando às 21:00h, seu Severino ajudado por
Sapo-Sunga, soltou o esperado balão, confeccionado em segredo para
maior surpresa, e maior suspense, causando grande alarido da garotada Em seguida acendeu
uma girândola de foguetes de lágrimas para admiração de todos nós.
Essa
fora a senha para começar o grande leilão. Protegido por um alambrado
de madeira, Carrinho Pereira começou a leiloar as prendas, distribuidas
numa mesa improvisada com tábuas sobre cavaletes: pães-de-ló, bolos de
tapioca, trigo e macaxeira, galinhas e capões recheadas, patos vivos,
cachos de banana, compoteiras de doces: ”Quem dá mais”? “Quem dá mais”?
apregoava o leiloeiro até que alguém fizesse um lance maior; aí o grito
era outro: “a fonte entrega a fulano”. Na hora do leilão do boizinho
aproximaram-se os pecuaristas: Zé Grande, Zelico, Pantim, Gigi, João
Ramalho, Raimundo Rodrigues, Pedro Almeida, Dico Araujo; a disputa fora
acirrada com lances cada vez mais altos, para impressionar os
presentes, ajudar a Matriz e AD MAIOREM DEI GLORIAM.
Às 22:00h o
Arraial esfriara e as pessoas foram saindo para os bailes, extensão pagã
da Festa de Santo Inácio. Algumas foram para a casa de Luiz de Dondona
Soares, na Rua Benjamin Constant, outros para as festas de segunda,
realizadas em bairros mais distantes. A elite social foi para casa
aprontar-se para o baile no Cassino Pinheirense. O presidente do clube,
Nezinho Soares, trouxe nesse ano um cantor maranhense que anos depois se
tornaria coqueluche nacional: Roberto Muller,o “Pingo de Ouro”,
hospedado em nossa casa, pois o meu padrasto Abílio, grande amigo de
Nezinho não lhe negara o pedido.
Eram poucos os veículos na
cidade, além de uma lambreta e um jipe dos padres, circulavam por nossas
ruas empiçarradas e esburacadas os jipes de Américo Gonçalves, Dico
Araujo e Zé Santos. João Moreira e Artuzinho comprariam seus veículos
anos depois. Fomos mesmo a pé, pois usávamos ainda sapatos baixos. O
sapateiro Elisabeto Costa, recém-chegado do Rio, onde aprendera com o
seu conterrâneo Rubens Corrêa a fazer sapatos de salto Luis XV, não
chegara para as encomendas.
Em casa trocamos mais uma vez de
roupa, pusemos um pouco de ruge, batom e perfume, indo com os nossos
familiares para o Clube, a estas horas já com as mesas de pista
totalmente ocupadas. No palco a orquestra dos Soares tocava sambas,
boleros, baladas dolentes, às vezes, a pedidos, um fox ou um
samba-canção. No fim do baile, tocaram marchinhas para animar o
ambiente. Os garçons prestimosos iam de mesa em mesa, servindo
refrigerantes, cervejas e pastéis, como tira-gosto.
As mesas
foram ocupadas pelos casais e seus familiares: os irmãos Zé Maria,
Raimundo e Américo, dr. Estrela, Goulart, dr. Arruda numa grande e
animada mesa. Henrique Schalcher, Ubaldo Pimenta, Deusdeti, com as suas esposas, formavam
outra mesa. Zé Santos, Ulisses Durans, Rui Marques, Wilson Marinho,
Odilon Soares, Edgar Cordeiro com as respectivas esposas e filhas.
Orlico Soares, Dedeco Mendes, Cravinato Nogueira, Cosme Duarte, Algenir
Aguiar, Marinheiro e o seu irmão Zé Pedro, João Campos, Pedro Almeida,
Didi Soares, Edésio Castro, os irmão Paiva, Maneco, Afonso e Luis,
também o Cel Paiva, Ribamar Ferreira, Gregório, Claudionor e Alberto
Corrêa, seu Edésio Alves, Dico Aroucha, Chiquinho de Gino, Antônio
Trindade, Ernildo e os irmãos Lourival, Chiquinho e dr. Zequinha Gomes,
Tarquínio Sousa, Abílio Loureiro, Juarez Leite, Ozório Abreu estes só
com as respectivas esposas e claro, Nezinho, presidente do clube a e sua
consorte.
No salão já dançavam: Haydée e Hibinho, Artuzinho e Socorro Jinkings, Ísis e
Byron, Júlio César e Anaclan, Nelcy Moraes e João de Deus, Edmilson e
Maria Lúcia, José Soares e Gilma, Edmir Beckman e Darly, ZéMaria Santos e
Niedja, Remi Trinta e Maria Alice, Maria Helena Castro e Eldonor, Lauro
Mineiro e Dijica, Zete e Leopoldo, Lurdinha e Fradique, Erasmo e
Marilene, Raimundinho e Maria Célia, Flora e Santinho, Ernaldo Peixoto e
Cocota, Aymoré e Delfina, Edméa e Reginaldo, Zé Anastácio e Laurení,
Sofia e Zé Pinheiro, Marbene e Orlandinho, Ana Fausta e Tote Leite,
Gilberto e Maria Isaura, Zé Roberto e Aparecida, Zuza e Maria de Lurdes
Pimenta, Elce e Levi Leite, Valdecí e Antenor, Celeste Guterres e Luiz
Paiva, Gatinho e Niédice, Edilson Peixoto e Socorro Castro, Ribamar
Martins e Cristina Rocha, Raimundo Estrela e Helinice e outros casais de namorados.
Sem par,
aguardando o convite para a dança: Cindoquinha, Glorinha Aroucha e sua
irmã Concita, Dilucinda Castro, Lucinda e Alcinda Ferreira, Bibi Moraes,
Flory, Maria de Jesus Nogueira, Maria
Helena Soares, Deny,
Teresinha e Dilma, Gracinha Marques, Maria Lúcia Cerveira, Lurdinha
Soares, Maria Pereira, Ericine Moreira, Lenir Dias, Alcinda Soares e
duas primas, Vitorinha, Lucenir, Selmita Melo, Dezinha Peixoto, Socorro
Marques e eu. Os rapazes, fazendo-se de rogado, esperavam o momento
certo para o almejado convite: Jurandy e Leitinho, Danilo Durans, Lauro
Reis, William Pinheiro, José Reinaldo, José Isaias, José Roberto e seu
irmão Inácio, Roberval Melo, Tinche, Florêncio, Capitão Leite, Edmar e
Ary Abreu, Tuzinho e Zé Carlos Rodrigues, Afonso Guimarães, Gladston,
Alexandre Botão, Catí, Alaôr Mota, Palmerinho, Aquiles, Rufino, os
irmãos Juca e Rui Cordeiro e outros que o tempo me fez esquecer.
Às
23:00h, após o intervalo, a atração trazida nesse ano, Roberto Muller
começou com o seu repertório de boleros e baladas: Beija-me muito,
Castiga-me, Lembranças, Nunca mais brigarei contigo e Vai saudade, foram
as mais aplaudidas. Os jovens sentaram e os senhores com suas esposas
foram dançar, destacando-se como pés-de-valsa: Abílio e Inez, Cravinato e
Olegária, Ubaldo e Gracinha, Ribamar e Mundoca, Artuzinho e Haydée.
O
sinal de que o baile estava prestes a acabar fora dado pela orquestra
que começou a tocar marchinhas de velhos carnavais. Às 2:00 h. em ponto a
orquestra emudeceu, os homens acertaram as contas com os garçons,
reuniram seus familiares, principalmente as filhas, pois nessa época não
era permitido aos rapazes levarem suas namoradas em casa.
Após
as despedidas entre os amigos que ficavam e os que iriam viajar para São
Luis, com promessas de cartas, pois ainda não havia serviço de telefone,
todos voltaram felizes e nostálgicos para as suas casas. As viagens
seriam de barco, incômodas, demoradas, pois apenas os mais abonados
viajavam de taxi-aéreo e mesmo assim por problemas de saúde.
Adeus, amigos! Viva Pinheiro! Salve Santo Inácio! Até o próximo ano!
OBS.:
Como justificativa pelas indiscrições cometidas, mencionando casais de
namorados, cujos romances foram desfeitos, invoco em meu favor, esta
citação de Pablo Neruda: “Nosotros, los de entonces ya no somos los
mismos”.
Era nosso desejo apresentar numa só tela panorâmica, um
dos aspectos da cidade de Pinheiro em fins da década de 1950, em plena
fase dos Anos Dourados, que refletisse o clima de efervescência cultural e
expectativas que vivíamos na mocidade, às vésperas de concluir o
Ginásio e deixar as plagas nativas. Gostaríamos de distribuir no cenário
todas as pessoas conhecidas, com papel maior ou menor, importantes e
não, mas todas inesquecíveis, movimentando-se no mesmo espaço cênico, ligadas
aos mesmos interesses, ajudando a tecer a história social da nossa
cidade.
Evocar é um ato posterior ao vivido e leva-nos a
incorrer em erros e omissões. Espero não ter causado embaraços e
constrangimentos, até mesmo recordações dolorosas. Apesar de ter
excelente memória, seria impossível lembrar-me de todos, amigos ou
simples conhecidos, 55 anos depois
desses acontecimentos. Muitas
pessoas ainda estão vivas, e por certo conservam em sua memória as
lembranças das festas das quais participaram e que foram por mim
evocadas; outras devem ter ouvido dos seus pais e avós; outras,
infelizmente, já dormem o sono da eternidade.
Concluindo, apelo
novamente a Dostoievski: “limito-me a narrar os fatos tais como se
produziram, tão exatamente quanto me foi possível, e, se parecerem
inverossímeis, a culpa não é minha”.
.