MOEMA

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PAPIRUS DO EGITO

domingo, 26 de junho de 2011

TRAJETÓRIAS ENTRELAÇADAS

              No período escolar de 1960 (àquela época de março a dezembro), morei no sobradão que pertencera a João Victal de Mattos. Nesse tempo, era propriedade e residência do Dr. Tancredo Mattos, seu sobrinho e herdeiro. A sua família estava constituída  por sua esposa, D. Esther (minha madrinha), e pela filha única do casal,   a Professora  Zaíde Mattos. Com eles residiam Marita, uma garota de 5 anos e sua mãe Conceição. Ambas gozavam do carinho e atenção da família.
Quando conclui o curso ginasial, em Pinheiro, a minha mãe escreveu à sua comadre Ester, solicitando-lhe verificar a  possibilidade  de  me hospedar na sua casa  a fim de cursar o científico, aqui em São Luís.
Naquele tempo, a escolha dos padrinhos dos filhos se constituía  em uma grande honraria, principalmente, no meu caso, filha única de José Paulo Alvim. Não era apenas simples cortesia e sim um reforço dos vínculos de amizade existentes desde a época de João Victal.
Acertados, por carta, os detalhes entre minha mãe (meu pai já havia falecido) e os Mattos sobre o pedido de hospedagem, chegara a hora de conhecer as madrinhas.  O meu Batismo foi realizado em Pinheiro por D. Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota, então Bispo de São Luís, em Visita Pastoral. Na impossibilidade da ida de dona Ester, fui levada à pia batismal por minha avó materna Raimunda Reis Castro que a representou.  A professora Zaíde fora escolhida para madrinha de Crisma, o que só aconteceu, no decorrer daquele ano da minha chegada a São Luís, na Igreja da Sé, oficiada pelo Pe. Constantino Vieira.
Ao chegar à casa dos Mattos, fui alojada num dos quartos  cujas janelas se abriam para a rua  da Palma.  
Em 1960, era ainda um sobradão imponente, com móveis e  guarnições dos antigos moradores, situado à Rua João Victal de Mattos, antigo Beco da Pacotilha e, numa época mais remota, Rua do Quebra Costas,  esquina com a Rua da Palma ou Herculano Parga.

Nos altos,  havia a residência da Família Mattos.
Na parte frontal, o térreo tinha cinco portas, sendo a do centro, usada como entrada social, de madeira almofadada e protegida por um portão de ferro  caracterizado por um bonito trabalho de serralheria. As largas portas, à esquerda, davam acesso ao Laboratório, enquanto as duas à direita serviam de entrada para a Farmácia e Drogaria.
Na parte superior, os cômodos de frente, separados por um vestíbulo,  mantinham, ainda, o charme requintado dos irmãos Mattos. No salão da esquerda ficava a biblioteca, cujas paredes eram totalmente revestidas por  estantes repletas de livros com capas, primorosamente, encadernadas e  personalizadas, de autores franceses, principalmente, e portugueses, em primeiras edições. Nesse cômodo, era onde estudava e preparava as minhas tarefas escolares, geralmente à tarde, usando uma escrivaninha ao estilo francês. Sobre ela havia um porta-caneta de bronze, antigo e valioso e mata-borrões.
O salão à direita, geralmente fechado, era aberto só em ocasiões especiais. Dominava o ambiente um piano no qual Omar Naufel, vizinho e amigo da família, tocava belas melodias francesas e italianas, para deleite dos anfitriões e convidados, nos frequentes saraus que costumavam ocorrer aos sábados. Assíduos frequentadores dentre outros eram o padre Pedro Tiddei, colega da Profa. Zaide, no Curso de Letras; o Prof. Antonio Araujo Martins, então Diretor do Liceu, e a família do Dr. Geraldo Melo, médico da família e professor de Microbiologia das Faculdades de Farmácia e de Ciências Médicas. Marcava sempre presença Ilka Campelo, aluna do Colégio Santa Teresa, filha de conterrâneos do Dr. Tancredo.  Havia, também, na sala, um conjunto de palhinha, ainda  bem conservado  e mesinhas de jacarandá sobre as quais se distribuíam cinzeiros, candelabros  e estatuetas de bronze, jarros e biscuits primorosos de porcelana chinesa, iluminados por um belo lustre de cristal.
As alcovas ficavam nos cômodos após esses salões. A sala de estar e jantar ficavam num só salão, também chamado de varanda. No ambiente reservado às refeições, além de uma bonita mesa com  8 cadeiras, via-se uma cristaleira com as taças e  copos para todos os tipos de bebida. Na parte inferior,  a prataria: talheres, baixelas, bandejas, paliteiros e um bonito serviço de jantar (travessas, pratos e sopeiras de porcelana  com pinturas delicadas)  e um de chá. No lado oposto duas cadeiras de embalo (austríacas).
Na ala esquerda da varanda, a eletrola, a mesinha com o  telefone, raro na época (só quatro números), e cadeiras esparsas para as visitas se distribuíam. O Dr. Tancredo passava a maior parte dos sábados e domingos numa dessas cadeiras, usadas, também, para a sesta e, à noite, para esperar o sono. Dessa varanda saia uma escada ligada à Farmácia.
O corredor largo, aberto, dava acesso a três outros dormitórios  com janelas para a rua da Palma e à copa-cozinha, de onde saia outra escada que levava ao Laboratório.
Por essa época, trabalhava na firma, como escriturária, a Sra. Raimunda Coelho, pinheirense, falecida há uns seis anos e  a última remanescente da turma da Escola Normal  de Pinheiro, inaugurada e fechada, no ano de 1925. Em 1929, essa senhora foi eleita a primeira Miss Pinheiro, candidata patrocinada pela Farmácia  do meu pai.
Um pouco por discrição e mais por timidez, raramente eu descia ao laboratório. Porém, nas poucas vezes que o fiz, ficava fascinada com a profusão de equipamentos, a grande variedade da vidraria, o cheiro que emanava dos recipientes nos quais as ervas medicinais eram maceradas para  posterior decocção e extração dos princípios ativos. Alambiques, destiladores, retortas, balões de vários tamanhos, almofarizes, béqueres, erlenmeyers, provetas, funis, kitasatos, buretas  e balanças, .  Nunca esqueci os potes de porcelana para ervas desidratadas, as caixinhas para as pílulas, os frascos de vidro transparentes e de cor âmbar, estes para impedir a passagem da luz, evitando, assim, a oxidação das tisanas, dos elixires, dos vinhos. Em todo o laboratório, junto aos odores exalados dos remédios em processo de fabricação, sentia-se a presença de João Victal, o seu espírito criador, a sua  perspicácia,  liderança e  inteligência  que o tornaram o pioneiro na industrialização de fármacos no Maranhão.
E fora, naquela época, que aquilatei a influência que João Victal  exercera  sobre o meu pai. A aquisição desses materiais, a organização dos mesmos, a paixão pela manipulação.
E não fora somente no aspecto profissional: com os irmãos Mattos, papai passou a gostar e apreciar as coisas boas e bonitas que o dinheiro pode comprar. O bom-gosto na escolha dos seus móveis, o cuidado na decoração e manutenção da sua casa, embora, a essa época ainda solteirão, os cuidados com a higiene pessoal, o tom afável com que tratava ricos e pobres, a etiqueta seguida à risca, o modo como obsequiava seus hóspedes e convidados eram suas principais características.
E eu, sua filha, aos 18 anos, tive o privilégio de residir por vários meses, como hóspede, na mesma casa em que meu pai chegou como simples aprendiz. Inicialmente, lavando frascos, depois manipulando os remédios,  saindo  com apenas 18 anos  cheio de sonhos e planos com um certificado de Prático de Farmácia, conferido e autenticado por João Victal de Mattos  e mais tarde (1930) revalidado pelo Presidente Vargas. 
Anos mais tarde, já estabelecido em Pinheiro, como boticário, proprietário da Farmácia da Paz, a mais conceituada da região, papai passou a  freqüentar aquela casa, como cliente, amigo e, mais tarde, como compadre, sempre que vinha a São Luís.
                                                 São Luís, 22 de junho de 2011
                                                     Moema de Castro Alvim

3 comentários:

  1. muito bom o blog. Parabéns.

    Esse sobrado referente deste post é um que fica X com a praça do centenário?

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  2. boa noite, estou fazendo minha monografia sobre a casa, teria como eu falar com você?

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  3. Dona Moema faleceu há uns 6 anos.

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