Há pessoas que colecionam objetos, alguns de pouco valor, como chaveiros, canetas, canecas de cerveja; outras colecionam selos, livros, discos, revistas e há outras cujos objetos valorizam-se muito com o passar do tempo, como pinturas, esculturas, obras de arte, enfim.
Ao longo desses setenta anos passados,
esforcei-me para conquistar e colecionar amigos, por onde passei: no Rio, em
Belo Horizonte, Brasília e claro em Pinheiro onde nasci e vivi os primeiros
dezesseis anos de vida e em São Luís onde graduei-me em Farmácia e voltei anos
depois para trabalhar na Secretaria Estadual de Saúde e na Universidade Federal
do Maranhão onde servi por 25 anos; no Laboratório Gaspar onde trabalhei
durante dois anos para o meu colega de turma, compadre e amigo até hoje,
Antônio Pinheiro Gaspar. Após a aposentadoria estabeleci-me como proprietária
do sebo Papiros do Egito, onde mais faço conhecimentos do que vendas.
Tenho amigos dentre pessoas simples e até
poderosas (bota poder nisso!), de todas as classes sociais, de todos os credos,
etnias, idades, sexos, profissões, ocupações. Amigos antigos de quase 60 anos e
amigos recentes; reais e virtuais, próximos e distantes. Alguns não vejo há 40,
50 anos, mas quando nos encontramos é como se nos tivéssemos visto no dia
anterior e o papo flui espontâneo, como se o hiato não existisse.
Eu sou uma colecionadora de amigos. Na
passagem do 70° aniversário natalício, o meu marido, Fransoufer, ofereceu-me um
jantar para 100 convidados e que foi transformado num evento de Solidariedade
aos adictos da Fazenda do Amor Misericordioso que se dedica, através do Pe.
João Luiz Mancini a reabilitá-los das drogas e dar-lhes uma esperança de vida.
Para isso convoquei os amigos. Gostaria de
convidar muito mais, mas o orçamento só chegava a 100. Além dos amigos, tenho
muitos primos, filhos dos primos e até seus netos, todos de minha estima e
consideração. Só deu para convidar um pequeno número de pessoas representativas
dos vários grupos sociais, intelectuais aos quais pertenço e outros envolvidos
com a causa em pauta (psiquiatras, psicólogos, terapeutas, sociólogos,
assistentes sociais, enfermeiras, farmacêuticos, dentistas, membros de
Pastorais da Sobriedade, das Comunidades Terapêuticas, empresários do ramo da
Medicina e outros que já ajudam, há tempos, na manutenção da Fazenda).
E as doações foram levadas ao restaurante,
outras levadas à minha casa e no meu sebo. Há dois dias que separamos, em
caixas, as roupas de cama, toalhas de banho e rosto, camisetas, bermudas,
cuecas, artigos de toalete, sandálias e cestas básicas. Já enchemos 12 caixas
que serão recebidas com satisfação pelos residentes da Fazenda. O meu pedido
encontrou eco no coração dos meus amigos e todos colaboraram com alegria e amor.
A surpresa da festa ficou por conta da chegada
do meu filho o qual não via há vários meses, pois ele reside em Fortaleza,
trabalhando num Centro de Recuperação de Dependentes Químicos. Ao descer do
automóvel em frente ao Restaurante Maracangalha, ele acompanhado de dez amigos,
suas esposas, noivas e namoradas, estavam me esperando e me recepcionaram com
flores e outras homenagens.
Devo esclarecer que o meu filho, também, é um
colecionador de amigos. Ele tem amigos recentes, pupilos, mas é fiel, leal aos
companheiros da adolescência. E sei que todos o amam, assim como seus
familiares, que sempre o trataram com distinção e solicitude.
Tenho problemas? Sim, como todo mundo. Momentos
de desânimo, de desespero, de angustia? Sim, mas não esmoreço, não cultivo
ódios, nem rancores, nem inimizades. Acreditem, mesmo levando uma vida sem glamour
e aparentemente simples, sou felicíssima e sabem por que? Porque nunca
ambicionei o que não podia obter; nunca tive inveja; nunca cobicei nada e nem
desejei ter a vida que outras pessoas levam. Nunca competi, nem concorri sequer
por cargos que ocupei. Questão de valores? Conformismo?
Muitas amigas me perguntam: “por que não viajas
para o exterior, para conheceres outras culturas, na Europa, Estados Unidos e
outros países dos outros continentes, para conhecer o berço da nossa
civilização?”
Mas qual é mesmo o berço da civilização? Qual é
mesmo a minha origem? Por que assumir culturas adventícias, se lá no âmago do
meu ser, no inconsciente e culturas herdadas dos meus ancestrais africanos e
indígenas, eu tenho a certeza de que nada em comum eu tenho com os nossos
colonizadores europeus que impuseram os seus costumes, a sua religião, a sua
língua, a sua história, os seus heróis, os seus valores? Eu não posso
correr atrás de raízes que não são as
minhas.
A história da nossa família começou a ser
tecida com a união do meu pai, descendente de africanos, com a minha mãe,
descendente de índios. A partir daí que começa o meu interesse e dos meus
irmãos para construir a nossa história, com as nossas aspirações simples,
prosaicas, mas autênticas.
Sabem os meus sonhos, os meus desejos, os meus
ícones, desde que comecei a valorizar o trabalho do meu pai? Conhecer os
templos da Ciência, aqui no Brasil, onde homens abnegados, cientistas que
pesquisaram, descobriram e identificaram os agentes etiológicos das doenças que
continuam a dizimar milhões de brasileiros por ano; seus transmissores e as
medidas preventivas para combatê-los e tratar os enfermos. E isso eu consegui:
pisei solos sagrados, conheci laboratórios, bibliotecas freqüentadas pelos
cientistas mais famosos do Brasil: Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e seu filho
Evandro Chagas, Adolfo Lutz, Belisário Penna, Helion Póvoa, José Pelegrino,
Frederico Simões Barbosa, Vladimir Lobato Paraense, Otto Bier, Jayme Neves,
Amílcar Viana, Aluísio Prata, Eduardo Alencar, Zigman Brenner, Ricardo Veronesi,
Manuel Abreu, Samuel Pessoa, o casal Deane, e muitos outros sábios, grandes
expoentes da Pesquisa em Parasitologia no Brasil. Alguns conheci pessoalmente e
cheguei a trabalhar em seus laboratórios, a manusear os seus livros, no
Instituto Oswaldo Cruz, em Manguinhos, no Instituto Adolpho Lutz em São Paulo,
no Instituto Renée Rachou, em Belo Horizonte e durante dois anos estagiei no
Centro Internacional de Identificação de Caramujos, em Brasília.
Amigos, agradeço a presença de todos vocês que vieram nesta noite trazer-me o seu abraço
de parabéns e, principalmente porque atenderam ao meu apelo para ajudar a
Fazenda do Amor Misericordioso que ajuda dependentes químicos a lutar contra a
compulsão pelas drogas ilícitas e pelo alcoolismo. Referida instituição fora
pensada em 2003, face à difícil e trágica realidade da adicção química, à dor
de centenas de famílias envolvidas como co-dependentes, iniciando-se com um
pequeno grupo de pessoas que se dispunham a oferecer apoio aos que acorriam em
busca de ajuda. Em 2005, com a organização da Pastoral da Sobriedade e a
colaboração de entidades estrangeiras italianas e alemães, a Diocese de
Pinheiro adquirira, no povoado de Ponta de Santana, um pequeno sítio onde fora
instalada um Centro, sob a coordenação do Pe. João Luiz Mancini, para acolher e
propiciar um programa de recuperação
aos adictos.
O Programa se desenvolve através da profunda espiritualidade à luz da Palavra de
Deus, pela laborterapia rural que
também auxilia na desintoxicação, assistência psicológica, atividades
educacionais, culturais, esportivas e grupos de mútua ajuda. O período de
permanência na Fazenda é de nove meses, onde é oferecida uma educação integral
para uma vida a ser vivida na sobriedade.
É a gestação de uma nova vida! São
50 os internos. O tratamento é gratuito, pois poucas famílias têm condições
para ajudar financeiramente a manutenção da Fazenda. O Programa também propicia
aos familiares, acompanhamento e orientação, através de reuniões semanais e
visitas familiares feitas pelos membros da Pastoral da Sobriedade, além de um
trabalho de prevenção com palestras,
visitas programadas à instituição com apresentação de testemunhos dados pelos internos.
Amigos, geralmente na data do nosso aniversário
natalício, damos uma paradinha no corre-corre diário, para fazermos uma
reflexão que nos leve a ter consciência do tempo em que tecemos a nossa
história e nos construímos. Na consciência do fluir da nossa temporalidade, na
certeza da nossa finitude, nos questionamos sobre o nosso viver, suas verdades
e mentiras, as alegrias e as tristezas, os erros e os acertos, nossas boas e
más ações. E esta possibilidade se torna mais freqüente quando atingimos a
meia-idade. Quando ultrapassamos os 70 anos, como é o meu caso, passamos a
buscar o sentido da vida, questionando-nos se a nossa caminhada existencial
fora útil ou inócua, exitosa ou um fracasso. Fazemos um balanço do que
recebemos e, principalmente do que demos; se nos capacitamos para a tarefa
fundamental de amar e de servir, uma vez que só nos pertence o
que ofertamos.Enfim, estamos aqui de passagem e o único passaporte que
levaremos é o das nossas ofertas,
das nossas doações.
No inventário deste ano constatei que fui bem
aquinhoada ao longo de toda a minha vida, pois mais recebi do que dei: sou de
um lar harmonioso, de uma família unida e amorosa; tive um pai exemplar e ainda
tenho uma mãe maravilhosa; filho, neto e marido que me amam; irmãos, cunhados,
sobrinhos inexcedíveis e colegas que me consideram e me estimam. Realizei-me
profissionalmente, pois tive o privilégio de trabalhar com ensino e pesquisa
que me apaixonaram. Após a aposentadoria optei pela companhia instrutiva e
silenciosa de milhares de livros, parceiros desde a infância.
E o que dei em troca de tantas dádivas? Como
retribuir tantas benesses, algumas recebidas, talvez imerecidamente?
Esta iniciativa que vocês estão me ajudando a
concretizar, talvez seja um pequeno e tímido passo para o início dessa
retribuição, ajudando-me a crescer como pessoa, para tornar-me digna da sua
amizade.
Falamos, comentamos, discutimos, postamos na
Internet, às vezes sabemos até dados estatísticos, coeficientes, previsões
sobre calamidades e epidemias que nos assolam, assim como sobre catástrofes
ocorridas em regiões longínquas, das quais não sabemos nem pronunciar-lhes o
nome, mas quando o assunto é tóxico,
saimos pela tangente, desconversamos e o que sabemos é só o que os meios de
comunicação nos servem desde o café da manhã.
Quantos de nós, aqui presentes, com exceção dos
especialistas da área, sabemos a extensão desse flagelo que está abalando os
alicerces da nossa civilização, que esgarça o nosso tecido social, que degrada
física e moralmente toda uma geração de jovens, sabotando-lhes seu futuro, roubando-lhes
seus sonhos e esperanças, minando-lhes a sua confiança, abreviando-lhes a sua
vida? Quantos de nós, leigos, estamos aptos para avaliar a extensão dos danos
mentais e a dependência química causadas pelas drogas – a toxicofilia?
Há algum tempo lemos em matéria de capa da
revista Veja, uma das mais conceituadas do país, reportagem sobre drogas, alertando que a questão não é
saber se um jovem vai
experimentá-las, mas quando o fará.
Dos festivais de rock aos combatentes de
guerras, dos guetos periféricos a certas seitas religiosas; dos morros, das
favelas, das invasões às portas das escolas e universidades, aos
estacionamentos de shoppings, às boates, aos barzinhos, às micaretas, às raves,
enfim, nas baladas freqüentadas por nossos filhos, elas estão à espreita a
rondá-los, assediando-os sorrateiramente, insidiosamente, insistentemente.
Somente quando elas adentram nossos lares,
desestruturando as nossas famílias, solapando as nossas economias, tornando-nos
coniventes e cúmplices, pelas tentativas equivocadas para protegê-los, pela
vergonha, desinformação e adiamento na procura de ajuda profissional é que
despertamos para o problema.
E o que fazemos? Recolhemo-nos em nossa concha
de culpa e auto-comiseração, apavorados, desarvorados, impotentes, com receio
que os nossos vizinhos, parentes e amigos descubram. Ficamos mais preocupados
com o preconceito, a discriminação do que com o horror vivido pelos nossos
filhos que, escravizados pelo vício, não conseguem sozinhos encontrar o caminho
de volta, pois em muitos casos é um caminho sem retorno, um túnel sem saída.
Não os estigmatizemos como drogados e viciados; não
os tipifiquemos como marginais e delinqüentes; não os rotulemos como maconheiros, diambeiros, vadios, degenerados e outros epítetos, pois
difundir o preconceito, atrelado à ignorância, dificultará a implantação
das medidas de prevenção,
retardando, outrossim, a busca pelo tratamento.
Considerada doença pela OMS perfeitamente
controlável, causa perplexidade a indiferença, negligência, incompetência e
descompromisso das sociedades e dos governos, frente a um problema de tal
dimensão, de tanta gravidade, de tantas conseqüências.
Se as drogas
se tornaram onipresentes, passaram sim, a ser problema de Saúde Pública, afetando
não só os adictos e seus familiares, mas os usuários e toda a sociedade que tem
se mostrado omissa, indiferente, egoísta, injusta.
Façamos nossas as palavras do Papa João Paulo
II: a droga é um mal e como todo mal deverá ser combatido.
E essa guerra não pode ser perdida! Todas as
frentes educacionais, terapêuticas, bem como todas as associações religiosas,
filantrópicas deverão unir-se para combater essa pandemia que está levando a humanidade ao holocausto, à
auto-destruição.
Finalizando, conclamo os amigos presentes a
tomarem parte nessa cruzada contra as drogas,
não com contatos físicos com os dependentes ou com os seus familiares, mas
ajudando-os anonimamente, através das Pastorais
da Sobriedade ligadas às Comunidades
Terapêuticas que os reabilitam como
seres humanos e sociais que são, resgatando-lhes a auto-estima, a sua dignidade
e respeito como cidadãos, pela reinserção social, com a reintegração no mercado
de trabalho.
Lembremo-nos que a guerra para os já atingidos,
mesmo reabilitados não termina. As suas batalhas contra a compulsão são
diárias, sofridas, dolorosas, lutando para vencerem um dia de cada vez, durante
toda a sua vida.
Obrigada pela presença e solidariedade de todos
vocês. Só por hoje!
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