SOBRE AS MEMÓRIAS DE INEZ
DE CASTRO
Moema de Castro Alvim
Os registros biográficos
despretensiosos de pessoas longevas, aparentemente comuns, costumam surpreender-nos
pela riqueza e diversidade de informações que nos deixam entrever aspectos
históricos e sócio-culturais e até mesmo econômicos de uma comunidade nos
primórdios de sua formação, contribuindo para um melhor conhecimento e uma
maior extensão a respeito da vida social dos primeiros moradores, revelando o
que não poderia ser percebido através das fontes tradicionais da
micro-história.
Construindo minuciosamente a
biografia de Inez de Castro,
utilizando um pequeno gravador, através do qual foram sendo registradas as
reminiscências de nossa mãe, o mano
José Paulo, traçando previamente um roteiro com muita dedicação e persistência,
conseguiu recriar toda a trajetória de
sua vida, desde o seu nascimento, procedência dos seus pais, suas atividades
ocupacionais e as dificuldades para criar com dignidade seus dez filhos; o
bairro em que fora criada, próximo à Igreja Matriz e à Faveira, considerada um
dos braços do Rio Pericumã, onde o primeiro núcleo urbano teria se
estabelecido; também o aprendizado das primeiras letras, seus mestres, os
métodos utilizados pelos professores leigos, até a instalação da primeira
escola oficial.
Perlustrando a história de vida
dessa mulher singular e extraordinária, tem-se a idéia da interação dos outros
indivíduos do mesmo estrato sócio-econômico, em Pinheiro, cujos moradores
estavam presenciando à transmutação de uma pequena povoação, outrora sesmaria
de índios, em vila e depois em cidade que se tornaria, alguns anos depois, a
mais importante da Região da Baixada.
Protagonista e testemunha, Inez
participou de todo esse processo, ativamente, assistindo às grandes
transformações que ocorreram na década de 1920, marco do desenvolvimento do
pequeno burgo, pálido reflexo das mudanças que aconteciam no mundo, conseqüentes
da Primeira Guerra Mundial. Surgido na Europa semi destruida, esse movimento
revolucionário cultural fora criado por americanos expatriados, ricos, ociosos
e sequiosos de usufruir o que o Velho Continente tinha ainda para oferecer e
que, a partir dessa época, perdera a sua hegemonia econômica para os Estados
Unidos, consolidada pela Grande Depressão de 1929.
As Artes como a Pintura, a
Escultura, a Arquitetura e até a Música, a Poesia e a Literatura, literalmente
foram recriadas por um grupo de intelectuais como Hemingway, James Joyce, Scott
e Zelda Fitzgerald, Gertrude Stein, Picasso, Rodin, Braque, Rousseau,
Apollinaire, Le Corbusier e muitos outros que influenciaram toda uma geração chamada,
erroneamente de geração perdida. Essas idéias varreram todo o
mundo, atingindo, também, o Brasil, culminando com a Semana de Arte Moderna, em
1922. Foi uma verdadeira revolução de valores, irradiando-se de São Paulo, Rio
de Janeiro e Minas Gerais para todas as regiões brasileiras, libertando-as dos
cânones rígidos impostos pela antiga Metrópole, mesmo após cem anos de sua
independência política.
Os arautos dessas boas novas foram
discípulos do maranhense Graça Aranha, escritor, membro da Academia Brasileira
de Letras e diplomata, radicado durante anos em Paris. Dentre os seus
seguidores destacam-se Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral,
Anita Malfati, Portinari, Manuel Bandeira, Menotti del Picchia, Di Cavalcante e
muitos outros intelectuais que despertaram o gigante adormecido com
as suas idéias arejadas e modernizadoras, seu modo de fazer literatura, poesia,
escultura e pintura, dando ao Brasil uma outra feição, uma nova personalidade,
oportunizando a criação da sua identidade cultural de autêntica brasilidade.
E os ecos dessas mudanças chegaram
até Pinheiro, através de um jovem juiz, de origem piauiense, o Dr. Elisabeto
Barbosa de Carvalho, sintonizado com essas transformações que se processavam em
todo o Brasil. Com a colaboração de outros amigos, também sensíveis a essas
mudanças, levaram à recém-criada cidade algumas dessas novidades; também para
quebrar o clima de hostilidades, acirradas principalmente nos períodos
eleitorais e que se refletiam no marasmo e atraso em que o pequeno burgo
vivenciava.
Datam desse período a fundação do
jornal “Cidade de Pinheiro”, ainda hoje
em circulação, inauguração de clubes sociais e esportivos com a formação dos
primeiros times de futebol, de teatros com encenação de peças e outras
atividades culturais; maior incremento das festas religiosas e profanas, como o
carnaval, as quadrilhas juninas; construção do Mercado Central, do Matadouro; reconstrução
da Igreja Matriz, substituindo o antigo templo por um com duas torres; a transferência
do cemitério do adro da Igreja dos Remédios (atual Praça de São Benedito)para
um espaço mais amplo com capacidade para
um maior número de túmulos, com a construção de um cemitério com áreas
delimitadas por calçadas de cimento, com capela, frontal de alvenaria trabalhado e totalmente
murado - o Cemitério Santo Inácio, ainda hoje em atividade. Também ocorreu a
instalação do Instituto Pinheirense e da Escola Normal que infelizmente só
funcionou um semestre e, em 1927, do Grupo Escolar “Odorico Mendes”, dirigido
por professoras normalistas além da formação da Biblioteca Popular. Outras
importantes aquisições da recém cidade foram: a Companhia Agrícola Industrial,
o Campo de Sementes, o Centro Agrícola Santo Inácio de Pinheiro e uma pequena
empresa de transporte terrestre com a chegada do primeiro caminhão. No campo
social, deu-se a reativação da Sociedade Beneficente, a criação da Sociedade
Mortuária e o Centro Artístico Operário e Eleitoral.
Inez
presenciou tudo, participou de tudo, informando-se de tudo, inclusive quando o
terror e a insegurança apossaram-se dos habitantes do município, por ocasião de
uma bárbara chacina que maculou de sangue o solo pinheirense. O seu pai,
Capitão Francisco Castro era o delegado na época e por essa fonte ela soube dos
pormenores. Vivendo à frente do seu tempo, Inez,
loquaz, desinibida, comunicativa, articulada, expressando-se bem, atuava em
comédias, cantava no coro da igreja e participava de todos os festejos
religiosos, inaugurações, bailes, piqueniques, sobressaindo-se dentre as irmãs,
conquistando amizades, admiradores e cortejadores.
As suas reminiscências põem em
relevo as peculiaridades da incipiente cidade, da sua comunidade formada por
pessoas procedentes dos municípios vizinhos, das fazendas e sítios, instalados
nas proximidades desde o período colonial; também o seu cotidiano em sua
dinamicidade, contradições, pequenas intrigas e boatos, existentes até hoje. Após
a década de 1920 quando a Vila de Pinheiro
fora elevada à Cidade, fomentando a
sua pecuária, lavoura, principalmente de arroz e algodão, incrementando seus engenhos,
aumentando o extrativismo, de óleos vegetais como copaíba, rícino (carrapato),
andiroba, gergelim e, de modo especial, de babaçu para aproveitamento no uso
doméstico e exportação das amêndoas, tornou-se o Centro mais promissor da
região, suscitando o interesse dos primeiros comerciantes dentre os quais José Paulo Alvim, que chegara
ainda na década de 1910, instalando a sua farmácia, e que viria a desposar Inez
em 1939. Também outros comerciantes, empresários, pequenos industriais, pároco,
profissionais liberais como juiz, promotor público, coletor, fiscal, advogados,
guarda-livros, professores, enfim dos primeiros funcionários públicos.
Com a abertura da Rua Nova e de
outras ruas, a cidade se expandiu. Semanalmente chegavam vapores trazendo
comerciantes, artesãos especializados, empresários, atraídos pelo franco
progresso do
Município. Vieram nessa época os primeiros
estrangeiros, representados pelos portugueses das famílias Paiva, Gonçalves,
Campos, Santos, Fernandes, Guimarães, Oliveira e outros, assim como sírio-libaneses
das famílias Nagem, Aboud, Felix, Amate.
A chegada da iluminação elétrica, fora
a pedra de toque para a instalação das primeiras máquinas de pilar arroz,
engenhos movidos a eletricidade para fabricação de açúcar, melado e aguardente.
Nas residências das pessoas de maior poder aquisitivo, as lamparinas e
candeeiros foram substituidos pelas lâmpadas incandescentes.
A cidade crescia a olhos vistos, despertando
o interesse de uma grande Companhia Francesa que instalou na chapada uma usina
para beneficiamento do babaçu.
Os carpinteiros, ferreiros,
pedreiros e mestres de obras aprendiam novas técnicas de construção, os beirais
das casas antigas foram substituídas por modernas platibandas, plantaram-se mudas
de palmeira imperial na praça da Matriz e as primeiras figueiras em todas as praças e avenidas que
constituem até os dias atuais o arcabouço da cidade. Data, também dessa década
o início dos processos eletivos, quando os moradores domiciliados no município
foram alistados, tornando-se aptos para votarem no primeiro prefeito e
vereadores.
Era o desenvolvimento tão esperado
pelos pinheirenses: tudo se transformava e Inez
atenta, participava de tudo, talvez esperando, no subconsciente, estar ainda
viva e lúcida, quase um século depois, para fazer este resgate histórico, como
porta-voz dos acontecimentos do século XX, dando o seu depoimento e testemunho
do processo de formação e desenvolvimento de nossa cidade.
Aos 100 anos, Inez, sempre de bem com a vida, que a dotou de excelente saúde e
invejável constituição, continua vaidosa, mantendo os cabelos impecavelmente
pintados, usando as suas preciosas bijuterias presenteadas por seus filhos,
noras, genros, netos e amigos, em substituição às suas antigas jóias; fã de
futebol, não perde uma partida televisionada do time de sua torcida – o Flamengo – e,
principalmente dos jogos das Copas. Lê bastante romances, jornais e as revistas
Veja e Isto É, mantendo-se informada principalmente nos assuntos políticos.
Casou-se duas vezes com homens
inteligentes e excepcionais, derrubando tabus e preconceitos. O primeiro
esposo, foi o farmacêutico prático José
Paulo Alvim, nosso pai, codoense,
ainda solteirão aos 50 anos, benquisto e respeitado na cidade e
circunvizinhanças onde se tornou referência na arte de manipular e cuidar da
saúde dos pinheirenses, na ausência de médicos.
Quatros anos após a morte do seu
companheiro de treze anos que lhe deixou três filhos, Aymoré e Moema,
adolescentes, e José Paulo ainda criança, e uma farmácia bem
montada para administrar e educar seus filhos, desposou um jovem poeta, Abílio da Silva Loureiro, natural de Balsas (MA), mas
criado em Teresina. Orador vibrante, poeta e declamador que inscrito o seu nome
nos anais de duas academias de letras que ajudou a fundar, tornando-se, após a
sua morte, patrono de uma delas. Cidadão pinheirense foi, também, professor do
Colégio Pinheirense e da Escola Comercial da ACREP e edil na Câmara Municipal
de Pinheiro. Nomeia a Biblioteca do CAIC, para a qual contribuiu com dezenas de
livros.
Com Abílio, Inez concebeu aos 47 anos, o seu filho caçula, Cleuber Cláudio, adotando,
nessa mesma época, a sua filha Tatiana
Gizeuda.
Inez viveu,
cantou, encantou, dançou, amou, sofreu, chorou a perda de quase todos os seus
entes queridos, casou duas vezes, enviuvou de ambos os maridos, mas não se
deixou abater, nunca desanimou nem perdeu a alegria de viver. Decidida e
dedicada trabalhou como comerciante durante 75 anos, interrompidos pela
violência e impunidade que dominam todo o País.
Reconhecida pela cidade que ela ama
e que a considera, foi homenageada pela Câmara Municipal como a comerciante em atividade, mais antiga de Pinheiro e no 150@ aniversário da
cidade foi uma das cidadãs condecoradas pelo Prefeito Municipal Filuca Mendes,
com a Comenda do Sesquicentenário Nessas mesmas comemorações foi representada
em carro alegórico no desfile temático, que percorreu as principais ruas.
Por sua trajetória de mulher
batalhadora, sempre pautada na decência e na integridade de caráter, por seu
amor, desvelo, abnegação, acompanhando com dedicação a nossa educação, com
pulso firme mas com muito carinho e por ser a nossa mãe é que orgulhosamente lhe prestamos esta homenagem, como preito
da nossa gratidão: LONGA VIDA, MAMÃE, Salve! Viva, Inez
dos Reis Castro.
São Luis, 21 de janeiro de 2013
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