Nem nos sonhos mais mirabolantes de sua Mãe, nos seus planos mais
fantasiosos ou nos seus projetos mais ambiciosos, nem com as respostas,
geralmente favoráveis obtidas, quando pedia para sua comadre Antônia
Curadora jogar cartas, preocupada com o futuro do seu primogênito, que
desde pequeno mostrava tendências artísticas, desenhando com carvão,
modelando a tabatinga retirada do fundo do riacho local onde sua mãe ia
lavar a roupa da família. Na sua ignorância ela achava que essas
atividades eram coisas de poetas e temia que o seu filho seguisse uma
profissão diferente e desconhecida de tudo o que constituía o seu
referencial de vida.
Nem mesmo quando adolescente, tendo a boa
sorte de vir para São Luís e residir na casa de d. Sinhazinha Santos,
exímia professora de piano de várias gerações de jovens da sociedade
ludovicense, morada inteira revestida de azulejos e localizada na Rua
Grande; estudar no Colégio Alberto Pinheiro, ao lado do Ateneu Teixeira
Mendes, próximo do Liceu Maranhense e do Colégio Rosa Castro. Nem pelo
privilégio de passar diariamente em frente ao imponente prédio da
Biblioteca Pública, apreciar os bustos dos imortais maranhenses;
caminhar pelas praças, avenidas, ruas, becos, subir e descer as ladeiras
e escadarias cujos nomes homenageiam e reverenciam os homens ilustres
que fizeram da capital do nosso Estado, a Atenas Brasileira. Nem quando,
a pedido das senhoras da casa, ia aos Correios e aproveitava para
contemplar a estátua de João Lisboa, na imobilidade do bronze, lendo o
seu jornal, a de Benedito Leite, altaneiro, na pracinha que leva o seu
nome e, quando o tempo e os afazeres permitiam admirar a herma de
Odorico Mendes e um pouco adiante, no Largo dos Amores, a estátua
imponente do nosso poeta maior, Gonçalves Dias, testemunhando o
desaguamento do Rio Anil na Baia de São Marcos, a lembrar-nos que
pereceu no mar, voltando para a terra natal.
Nem mesmo quando
começou a mostrar timidamente, no colégio, os seus primeiros desenhos
coloridos com lápis, tão desejados na sua infância de menino pobre do
interior; ele não almejava ganhar carrinhos, aviões, espingarda de
chumbinho, nem quebra-cabeças que levam a criançada ao delírio e que
seus pais não poderiam comprar-lhe. Ele só desejava um caderno de
desenho com folhas presas por espiral e uma caixa de lápis de cor,
daquelas grandes e de matizes diferentes, o que só conseguiu aos
catorze anos, com o seu primeiro salário, como office-boy do Lord Hotel.
Nem quando foi aprimorar-se em Brasília, fazendo cursos de
desenho e pintura, participando de gincanas, depois em exposições
coletivas com outros jovens artistas, quando passou a assinar-se
Fransoufer, pela junção das iniciais do seu prenome com os seus nomes
Sousa e Ferreira; mais tarde em São Luís, dono de um estilo próprio,
divulgando o folclore de sua região, homenageando seu santo protetor,
São Francisco, inicialmente com uma paleta em tons pastéis e depois em
cores vivas como o defensor dos animais deve ser lembrado.
Nem
quando pintor já reconhecido, começou a fazer exposições individuais nas
principais capitais do Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste,
recebendo premiações em ouro, prata e bronze. Nem quando a sua atividade
artística começou a ser divulgada na mídia, em documentários veiculados
a nível nacional, reportagens, músicas carnavalescas de Escolas de
Samba de São Luís e através de monografias e teses de dissertação
do Curso de Letras das Universidades. Nem quando algumas obras suas
foram exibidas em outdoors, espalhados nos quatro cantos da cidade,
calendários, cartões natalinos, distribuídos às grandes empresas, capa
de agenda de professores da rede pública e integrar como artista
maranhense, capítulo de livros de Educação Artística, adotados em todo o
Estado. Nem mesmo quando dez obras suas foram estampadas em dois
milhões de cartões telefônicos, inundando o Rio de Janeiro.
Nem mesmo quando foi premiado em Bruxelas – menção honrosa, numa obra cujo tema é o bumba-meu- boi do Maranhão.
Nem
mesmo quando demonstrou a versatilidade do seu talento ao ter os seus
temas moldados na argila, formando escola – Cerâmica Jaburu -, ensinando
meninos do seu povoado a arte de trabalhar com o barro que pisam desde
que começaram a dar seus primeiros passos, dando-lhes a oportunidade que
ele não tivera; os seus desenhos reproduzidos em redes confeccionadas
em teares, por mulheres da sua gente; e nos tapetes tecidos por mulheres
carentes, moradoras de várias invasões que cercam nossa cidade,
trabalhos esses expostos e premiados aqui em São Luís e no Rio de
Janeiro.
Nem mesmo quando foi condecorado com o Escudo de Prata,
na década de 80, pelo Ministro de Minas e Energia, César Cals, na
abertura da Semana do Meio Ambiente, pelos temas abordados em seus
quadros, em reconhecimento à sua postura em defesa da Ecologia. Nem
quando recebeu uma das críticas mais favoráveis feitas pelo romancistar
conterrâneo, Josué Montello e publicada na Revista Manchete, nessa época
a revista de maior circulação nacional; também, do escritor Marcos
Vinícius Vilaça, ambos levados ao seu ateliê em Brasília, pelo Sen. José
Sarney, ex-Presidente da República, também poeta, cronista e romancista
e pintor diletante, todos os três, membros efetivos da Academia
Brasileira de Letras.Outras excelentes críticas que o impulsionaram a
seguir em frente, da artista plástica mineira Maristela Tristão, de
Sidartha, pintor brasiliense e outros tantos críticos das cidades onde
expôs e daqui de São Luís, críticas generosas do escritor, teatrólogo e
crítico de arte, Ubiratan Teixeira, do poeta e cronista Ivan Sarney, do
saudoso poeta, biógrafo e ensaísta Carlos Cunha, do escritor Cloves
Sena, todos pertencentes à Academia Maranhense de Letras. Do seu grande
mestre, sempre reverenciado, Nagy Lajos, notável artista
desterrado em nossa cidade e do grande, e também saudoso amigo, Ambrósio
Amorim que fez de sua arte um canto de paixão a São Luís.
Entretanto,
nenhuma dessas premiações em reconhecimento ao seu talento o fizeram
tão desvanecido, como o convite formulado por um pequeno grupo de
artistas plásticos, radicados no Rio, para fazer parte do quadro de
membros da Academia de Letras e Artes de Paranapuã e tomar posse, como
membro correspondente, na mui heróica cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro. A grata surpresa se deveu ao fato de ser a cadeira patroneada
por Flory Gama, um dos mais ilustres escultores brasileiros, nascido em
solo maranhense, no município de Vargem Grande.
Com sede no
Bairro da Tijuca, zona norte do Rio, referida Academia congrega
escritores, poetas, pintores, escultores de reconhecido valor, de todos
os estados brasileiros.
Fransoufer, entretanto nunca perdeu a
modéstia, a timidez, nem a vaidade deturpou-lhe o caráter, fazendo
esquecer-se das suas origens interioranas, do interior do Maranhão, que talvez, não o prestigie na medida do seu
talento.
Nascido no povoado Mojó, distrito do município de
Bequimão, localizado na Baixada Maranhense, palmilhada por tribos
indígenas desde os albores do século XVIII, quando era denominado Santo
Antônio e Almas, foi criado até os nove anos por seus pais, lavradores
semi-alfabetizados, que praticavam uma lavoura de subsistência, baseada
unicamente nos conhecimentos rudimentares adquiridos dos seus
antepassados, ou seja, a queima indiscriminada da cobertura vegetal,
preparando, assim, a terra para o plantio da mandioca com a qual é feita
a farinha, base da alimentação do maranhense pobre do interior.
Como
filho mais velho de uma prole de oito, acompanhava seus pais nesse
labor, arrancando ervas daninhas nas leiras tão arduamente cultivadas.
Além da mandioca plantavam feijão, macacheira, batata doce, jerimum e um
pouco de milho para ração dos animais que criavam no terreiro de sua
casinha.
Embora a terra costume ser generosa, quando manejada com
descaso, cobra um preço razoável, esgotando os seus nutrientes,
carecendo de um certo tempo para a recuperação dos minerais, necessários
para o desenvolvimento das raízes da mandioca. Isso levava seus pais a
mudarem constantemente os seus roçados, em busca de terras menos
cansadas e, consequentemente mais férteis.
Durante esse período, Chiquinho como era chamado carinhosamente pelos familiares, não teve
oportunidade
para alfabetizar-se, ocupado que estava, ora ajudando seus pais na
roça, caçadas e pescarias, ora cuidando dos seus irmão mais novos que
chegavam, regularmente, com intervalo de dois anos.
Aos nove
anos começou a tardia e difícil tarefa de alfabetizar-se numa escolinha
do povoado, distante alguns quilômetros de sua casa, por insistência de
sua mãe que queria que o seu primogênito fosse bem sucedido na vida,
temendo que se tornasse mais um roceiro analfabeto, curtido pelo sol
inclemente da Baixada, tendo como única alternativa ser tocador de
zabumba, como seu pai.
Essas suas origens rurais propiciaram-lhe
um contato constante com a natureza e com os costumes regionais e suas
poucas atividades culturais, que se resumiam às brincadeiras de
bumba-meu-boi, no período junino,às festas do Divino, às raras festas
religiosas, geralmente em homenagem ao padroeiro São Sebastião, com
procissão, missas, ladainhas e quermesse; às pouquíssimas festas de
batizado e casamento, às sessões de terecô e cura. Essas foram,
provavelmente, as atividades decisivas para inspirar e fazer desabrochar
a sua vocação, que não fora herdada, pois nunca soube de avós artistas,
mas, certamente forjada naquele caldeirão cultural em que borbulham as
crendices dos descendentes de escravos africanos, remanescentes nos
vários quilombos instalados na região; as lendas deixadas pelos índios
que habitaram aquele pedaço de chão, temperadas por laivos genéticos dos
brancos descendentes de portugueses, provenientes de Alcântara e
Guimarães e, mais tarde dos cearenses acossados pelas inúmeras secas no
seu Estado.
Ainda garoto, começou a modelar as suas primeiras
peças de cerâmica, usando a tabatinga retirada no fundo do rio usado por
sua mãe para lavar a roupa da família. Essas peças, toscas reproduziam o
cotidiano do menino, e eram postas para secar sobre as folhas das
vitórias-régias e depois levadas orgulhosamente para enfeitar a sua
casa.
Com a idade de dez anos fora trazido para São Luís por sua
madrinha e tia Dionísia, irmã de sua mãe, abrindo-lhe novos horizontes.
Simples, modesto, generoso, solidário, compassivo, avesso a
festas e bajulações, Fransoufer vive, exclusivamente, para a sua arte,
confinado em seu ateliê no Sítio Leal e nos fins de semana visitando o
seu velho pai, no Sítio Canaã, em Bequimão.