Quando eu nascí, o mano Aymoré já estava no mundo há dois anos. Era o
bijou da família. O nome que atualmente tem conotação pouco lisonjeira,
usado para denominar jóias falsas ou bijuterias. Mas o nosso bijou, com
o passar dos anos foi se transformando numa gema rara, preciosa e hoje é
o diamante que conhecemos e admiramos, lapidado ao longo de uma
trajetória de impoluta vida pessoal e profícua carreira profissional. É
motivo de orgulho para nossa família, para seus filhos e neto, para a
cidade de Pinheiro que o considera um dos seus filhos mais ilustres e
para todo o Maranhão que o conhece como um grande mestre e um dos varões
mais respeitáveis e honrados. No fim de 2012 foi condecorado com a
Comenda do Mérito Timbira, a mais elevada do Estado, pelo seu trabalho
na área de Educação.
Também a edilidade de São Luís, cidade na
qual Aymoré presta os seus serviços, iniciados como médico há 46 anos e
40 como professor universitário, outorgou-lhe a Comenda Simão Estácio da
Silveira, a maior honraria da Câmara de Vereadores.
A sua posição como
primogênito e favorito do casal Inez de Castro e José Alvim, nunca
causou aos outros irmãos, resquícios de desconforto e inveja. Ao
contrário, queríamos sempre imitá-lo, participar das brincadeiras que
criava e liderava e, quando possível, partilhar do sucesso que obtinha
com os amigos dos nossos pais, vizinhos e parentes.
Cada um de
nós ocupava um lugar especial na família, sem disputas, nem
ressentimentos. Aymoré, o primogênito, o esperado, o abre-alas; eu, o
recheio, a queridinha do papai, a nega de mamãe, a xanxan das tias. José
Paulo que herdou o nome do nosso pai, era o benjamin, o raspa de tacho,
o caçula que fechou a primeira geração do clã dos Alvim.
Cleuber Cláudio e Tatiana vieram depois de outro consórcio de mamãe, após a sua viuvez
Voltando à infância, Aymoré era o líder de nossas as nossas brincadeiras e, na maioria das vezes eu era a sua coadjuvante;
-
Bumba-boi: ele era o cantador, o balhante mais destacado com o seu
maracá, enquanto eu enfeitava o couro do boi, com canutilhos e miçangas
assim como os chapéus de todos os brincantes.
- Festa do Divino:
ele o mestre de cerimônias, eu a coreira, a tocadora de caixa, além de
recrutar primas e vizinhas para caixeiras. Também era responsável pela
decoração do mastro, erguido pelos outros garotos no início das festas e
derrubado no último dia, com grande algazarra de todos.
-
Explorador de petróleo: à época em que uma equipe de engenheiros
americanos chegou à região para trabalhos de prospecção no lugar
Tiquira. Nessa brincadeira eu ficava de longe pois envolvia o uso de
bombas de morrão, usadas para anunciar a descoberta do produto. O
encanamento era feito com talos de folhas de mamoeiro, unidos com tubos
de borracha de irrigador e o petróleo era obtido da mistura de azeite de
carrapato com querosene. Muito criativo, não?
- Médico: bem, as primas e vizinhas eram as pacientes. Eu era apenas a atendente e enfermeira.
Outras
brincadeiras eram o futebol, ele o artilheiro, eu a goleira do time;
jogo de botão, empinar papagaios confeccionados por mim com talo de
bambu e papel de seda; carrinhos de rolimã, bolinhas de gude ou borroca e
também de delegado de polícia. Pobre da turma que passava nas imediações
lá de casa: era julgado sumariamente e jogado no calabouço em cujo piso
Aymoré punha areia misturada com sal e urina. Abraão e Gutemberg (Seu
Guta) eram as maiores vítimas.
Também confeccionava máquinas de
filmar, usando uma caixa de papelão com lentes de vidro para projetar
filmes, feitos com papel celofane desenhados por ele.
Aos onze
anos ele pediu para mamãe um dos pequenos quartos próximos da copa,
usados geralmente para alojar hóspedes. Com o auxílio de caixotes e do
marceneiro Seu Benedito que vivia a essa época em nossa casa fazendo com
cedro polido, no capricho, o caixão de papai, ainda saudável, mas
previdente, pois dizia que quando morresse não queria dar trabalho à viúva. Várias
plaquetas eram pregadas no caixão, com dizeres em latim. Lembro-me
apenas da que ficava na cabeceira: "Consumatus est". Pois bem, o citado
carpinteiro fez um console que era coberto com toalhas de labirinto,
deixadas por nossa avó paterna. Os paramentos foram conseguidos por
Cecé, nossa tia querida, que aproveitou as peças descartadas da Matriz
de Santo Inácio; as hóstias eram cápsulas de amido subtraídas da
farmácia de assim como o vinho moscatel usado por papai na manipulação
de tinturas.O pregador era Aderaldo ainda hoje nosso amigo e confrade na
APLAC; Inacinho, nosso primo, o bispo para quem se preparava com as
colchas de cama de mamãe um suntuoso trono; a mitra também era feita por
mim, com cartolina, arminho e orvalho colados com goma arábica. Nessa
capela, Aymoré era o celebrante, o confessor e ministrava batizados,
extrema-unção. Esta última atividade era feita com tanta convicção que
até ele ficou convencido da vocação religiosa. Antonio Carlos Lobato e
Fuad Amate seminaristas à época, encarregaram-se de recomendá-lo ao
Reitor do Seminário Santo Antônio, após a morte de papai.
Impressionava
mesmo a seriedade com que Aymoré dirigia os ritos religiosos, as
ladainhas e procissões, principalmente na Semana Santa. Gutemberg que
morava na casa do Dr. Hélio Costa na rua detrás da nossa, padecia
debaixo das chibatadas dos soldados romanos, após o julgamento por
Pilatos, após a famosa lavagem das mãos. Aymoré fazia o papel de Nero e
de Pilatos com maestria. A via-sacra era, também impressionante.
Porém
a melhor de todas as fases foi quando ele ganhou uma bicicleta. Ele
teria nessa época entre 11 e 12 anos. Claro que ele ensinaria à mana:
aprumou-me no selim da dita cuja, deu o impulso do alto do canto da casa
dos familiares do Pe. Newton e empurrou a bicicleta ladeira abaixo,
indo estatelar-me na calçada da casa de José Veloso. Foi um quedão. As
ruas de Pinheiro tinham sido recentemente piçarradas pelo prefeito em
exercício Paulo Reis Castro, nosso tio, irmão mais velho de mamãe.
Apesar dos arranhões provocados pelas pedrinhas valeu à pena. A partir
dessa experiência, perderia por completo o medo de andar de bicicleta,
tornando-me exímia ciclista, participando de corridas e porfias,
vencendo quase sempre.
Aos doze anos, Aymoré era o terror das
professoras. Que o digam as professoras Maria Quitéria no Odorico Mendes
e Terezinha Leite Guterres na Escola Paroquial. Os emissários com
bilhetes para
papai eram freqüentes, contando as proezas do mano.
Papai, então, mandava-o apanhar o rebenque feito de couro cru,
ensebá-lo e só então lhe aplicava o devido corretivo.
Papai
apesar de amá-lo não lhe dava refresco, talvez, até por importar-se
tanto com o seu futuro. Não o mimava: de manhã cedinho, Zé Alvim se
punha na janela, inspecionando a varreção da calçada a cargo de Aymoré.
Os transeuntes, a caminho do mercado ou da igreja, ficavam indignados
com essa forma do pai disciplinar o filho, ensinando-o, também a ser
obediente e sem orgulho. E olhem que na nossa casa, entre cozinheira,
lavadeira, arrumadeira, agregados e aderentes havia de 8 a 10 pessoas,
até jardineiro.
Aymoré sempre foi curioso. Perguntava tudo e a
todos; quando ele passava pela nossa rua os vizinhos fechavam portas e
janelas, para evitarem as perguntas, cujas respostas não sabiam, do
filho de Zé Alvim.
Aos 11 anos nosso pai achou que era hora do
seu primogênito aprender um ofício: nada de ficar de bobeira durante as
férias, pois os livros que ele nos comprava não nos seguravam mais em
casa. Éramos ativos demais para a sua idade, aos sessenta anos. Aymoré
foi inicialmente soprar fole na oficina do seu compadre Demetrinho
Ramalho; nas férias seguintes a oficina escolhida foi a do sapateiro
José Pedro Amengol, onde passava as tardes batendo sola. Depois foi a
vez do aprendizado de barbeiro com o seu amigo José Costa de quem era
cliente. Para Moema, prendas domésticas: renda de almofada, bordados à
mão com Doninha do Seu Leude, coletor estadual.
Após a morte de
papai, em dezembro de 1952, o meu parceiro de brincadeiras e estripulias
(já ia esquecendo os trapézios, balanços e escorregas) foi para o
Seminário Santo Antônio, em São Luis, para preparar-se para a ordenação.
Em 1957, com o curriculum enriquecido por outras atividades como
a poesia, teatro, até canto e oratória. Aymoré descobriu que não
tinha vocação sacerdotal e deixou o Seminário. A fama de conquistador
veio dos tempos de seminarista, aliando a pinta de galã com o charme de
saber Latim. As alunas pululavam em casa para desespero de mamãe.
Nessa
época ocorreu uma pane no velho motor a diesel e a cidade passou uns
bons dois anos às escuras. O vigário da paróquia, o saudoso Pe. Luiz
Zecchinato providenciou energia para funcionamento da nossa eletrola,
desde que custeássemos a fiação. E assim foi feito. Nas férias os jovens
se reuniam lá em casa e até que mamãe os pusessem porta a fora,
dançávamos os boleros tocados por Irany e seu conjunto, as canções
latino-americanas na voz de Nat King Cole, mambos, rumbas, sambas.
Fizeram
parte desse grupo os primos Tinche e Lauro, os irmãos Leite Jurandy,
Leitinho e Erasmo, os irmãos Durans Darly, Niedja e Danilo, as irmãs
Castro, nossas primas, Maria Helena e Socorro, os irmãos Santos José
Maria, Maria Alice e Delfina, Flory Moraes, Edméa Carvalho, Cristina
Rocha, Sofia e Cindoquinha Castro, Eldonor Cunha, Ernaldo Peixoto, Ary
Abreu, Ribamar Martins, Capitão (João Leite) e Florêncio Ferreira, estes
últimos um pouco mais velhos do que nós. Muitos desses parceiros de
tertúlias são nossos amigos até hoje, alguns comadres e compadres,
confrades na APLAC, mas alguns já faleceram.
Após sair do
Seminário, Aymoré estudou no Colégio São Luís do Prof. Luiz Rego, onde
além de estudar participava de shows, cantando. Também cantou várias
vezes em programas de calouros das Rádio Timbira, sendo algumas vezes
gongado, porém na maioria deles levava para a pensão da Tia Celsa, onde
morava, pacotes de café, sabão e outros prêmios distribuídos pelos
patrocinadores.
Já me alonguei bastante. A memória ainda é boa,
mas satura quem não participou dessa quadra da nossa vida. Em outra
oportunidade contarei o resto.
Só queria deixar, neste texto,
patenteada a minha gratidão ao mano por ter aceitado substituir-me na
cadeira de Parasitologia, quando saí para fazer o curso de mestrado na
UFMG, imprescindível para deslanchar a minha carreira como docente e
pesquisadora na UFMA e desculpar-me por desviar as suas atividades
profissionais, de médico obstetra para professor de Parasitologia,
exercendo esse mister por 40 anos. Nesse período exerceu por oito anos a
chefia do Departamento de Patologia, foi chefe de gabinete no reitorado
do prof. Aldy Melo, Pró-Reitor de Graduação. Um dos idealizadores e
fundadores da Fundação Sousândrade, fundou, também, a Sociedade de
Parasitologia e Doenças Tropicais do Maranhão e juntamente com a sua
esposa, também professora Dra. Maria Augusta Brahuna Alvim e sua irmã
Moema, desenvolveram várias pesquisas em Esquistossomose, Verminoses e
Leishmanioses. Após a aposentadoria, fundou a Sociedade Maranhense de
História da Medicina, que congrega médicos especializados em várias
áreas e interessados em estudar e deixar para os sucessores os seus
conhecimentos e o início das várias especializações da Medicina no
Maranhão. Também é membro atuante do IHGM, da Academia de Medicina e
membro fundador e Secretário Geral da APLAC.
UM TECTO DELICIOSO, COM CENAS QUE NOS TRANSPORTAM PARA A ÉPOCA ONDE A NARRATIVA REFLETE COM EXATIDÃO OS FATOS E MOSTRA QUE ALÉM DE GRANDE MESTRE, VOCÊ É UMA EXÍMIA HISTORIADORA E DONA DE UMA MEMÓRIA PRIVILEGIADÍSSIMA. FOI BOM SABER QUE DR. AYMORÉ TAMBÉM FOI UM JOVEM TRAQUINA.
ResponderExcluirExcelente, Moema! Como tudo o que fazes! Parabéns aos dois irmãos, parabéns a toda família Alvim! Abraços
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