MOEMA

MOEMA
PAPIRUS DO EGITO

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Minhas Reminiscências

Quando eu nascí, o mano Aymoré já estava no mundo há dois anos. Era o bijou da família. O nome que atualmente tem conotação pouco lisonjeira, usado para denominar jóias falsas ou bijuterias. Mas o nosso bijou, com o passar dos anos foi se transformando numa gema rara, preciosa e hoje é o diamante que conhecemos e admiramos, lapidado ao longo de uma trajetória de impoluta vida pessoal e profícua carreira profissional. É motivo de orgulho para nossa família, para seus filhos e neto, para a cidade de Pinheiro que o considera um dos seus filhos mais ilustres e para todo o Maranhão que o conhece como um grande mestre e um dos varões mais respeitáveis e honrados. No fim de 2012 foi condecorado com a Comenda do Mérito Timbira, a mais elevada do Estado, pelo seu trabalho na área de Educação.
Também a edilidade de São Luís, cidade na qual Aymoré presta os seus serviços, iniciados como médico há 46 anos e 40 como professor universitário, outorgou-lhe a Comenda Simão Estácio da Silveira, a maior honraria da Câmara de Vereadores.
A sua posição como primogênito e favorito do casal Inez de Castro e José Alvim, nunca causou aos outros irmãos, resquícios de desconforto e inveja. Ao contrário, queríamos sempre imitá-lo, participar das brincadeiras que criava e liderava e, quando possível, partilhar do sucesso que obtinha com os amigos dos nossos pais, vizinhos e parentes.
Cada um de nós ocupava um lugar especial na família, sem disputas, nem ressentimentos. Aymoré, o primogênito, o esperado, o abre-alas; eu, o recheio, a queridinha do papai, a nega de mamãe, a xanxan das tias. José Paulo que herdou o nome do nosso pai, era o benjamin, o raspa de tacho, o caçula que fechou a primeira geração do clã dos Alvim.
Cleuber Cláudio e Tatiana vieram depois de outro consórcio de mamãe, após a sua viuvez
Voltando à infância, Aymoré era o líder de nossas as nossas brincadeiras e, na maioria das vezes eu era a sua coadjuvante;
- Bumba-boi: ele era o cantador, o balhante mais destacado com o seu maracá, enquanto eu enfeitava o couro do boi, com canutilhos e miçangas assim como os chapéus de todos os brincantes.
- Festa do Divino: ele o mestre de cerimônias, eu a coreira, a tocadora de caixa, além de recrutar primas e vizinhas para caixeiras. Também era responsável pela decoração do mastro, erguido pelos outros garotos no início das festas e derrubado no último dia, com grande algazarra de todos.
- Explorador de petróleo: à época em que uma equipe de engenheiros americanos chegou à região para trabalhos de prospecção no lugar Tiquira. Nessa brincadeira eu ficava de longe pois envolvia o uso de bombas de morrão, usadas para anunciar a descoberta do produto. O encanamento era feito com talos de folhas de mamoeiro, unidos com tubos de borracha de irrigador e o petróleo era obtido da mistura de azeite de carrapato com querosene. Muito criativo, não?
- Médico: bem, as primas e vizinhas eram as pacientes. Eu era apenas a atendente e enfermeira.
Outras brincadeiras eram o futebol, ele o artilheiro, eu a goleira do time; jogo de botão, empinar papagaios confeccionados por mim com talo de bambu e papel de seda; carrinhos de rolimã, bolinhas de gude ou borroca e também de delegado de polícia. Pobre da turma que passava nas imediações lá de casa: era julgado sumariamente e jogado no calabouço em cujo piso Aymoré punha areia misturada com sal e urina. Abraão e Gutemberg (Seu Guta) eram as maiores vítimas.
Também confeccionava máquinas de filmar, usando uma caixa de papelão com lentes de vidro para projetar filmes, feitos com papel celofane desenhados por ele.
Aos onze anos ele pediu para mamãe um dos pequenos quartos próximos da copa, usados geralmente para alojar hóspedes. Com o auxílio de caixotes e do marceneiro Seu Benedito que vivia a essa época em nossa casa fazendo com cedro polido, no capricho, o caixão de papai, ainda saudável, mas previdente, pois dizia que quando morresse não queria dar trabalho à viúva. Várias plaquetas eram pregadas no caixão, com dizeres em latim. Lembro-me apenas da que ficava na cabeceira: "Consumatus est". Pois bem, o citado carpinteiro fez um console que era coberto com toalhas de labirinto, deixadas por nossa avó paterna. Os paramentos foram conseguidos por Cecé, nossa tia querida, que aproveitou as peças descartadas da Matriz de Santo Inácio; as hóstias eram cápsulas de amido subtraídas da farmácia de assim como o vinho moscatel usado por papai na manipulação de tinturas.O pregador era Aderaldo ainda hoje nosso amigo e confrade na APLAC; Inacinho, nosso primo, o bispo para quem se preparava com as colchas de cama de mamãe um suntuoso trono; a mitra também era feita por mim, com cartolina, arminho e orvalho colados com goma arábica. Nessa capela, Aymoré era o celebrante, o confessor e ministrava batizados, extrema-unção. Esta última atividade era feita com tanta convicção que até ele ficou convencido da vocação religiosa. Antonio Carlos Lobato e Fuad Amate seminaristas à época, encarregaram-se de recomendá-lo ao Reitor do Seminário Santo Antônio, após a morte de papai.
Impressionava mesmo a seriedade com que Aymoré dirigia os ritos religiosos, as ladainhas e procissões, principalmente na Semana Santa. Gutemberg que morava na casa do Dr. Hélio Costa na rua detrás da nossa, padecia debaixo das chibatadas dos soldados romanos, após o julgamento por Pilatos, após a famosa lavagem das mãos. Aymoré fazia o papel de Nero e de Pilatos com maestria. A via-sacra era, também impressionante.
Porém a melhor de todas as fases foi quando ele ganhou uma bicicleta. Ele teria nessa época entre 11 e 12 anos. Claro que ele ensinaria à mana: aprumou-me no selim da dita cuja, deu o impulso do alto do canto da casa dos familiares do Pe. Newton e empurrou a bicicleta ladeira abaixo, indo estatelar-me na calçada da casa de José Veloso. Foi um quedão. As ruas de Pinheiro tinham sido recentemente piçarradas pelo prefeito em exercício Paulo Reis Castro, nosso tio, irmão mais velho de mamãe. Apesar dos arranhões provocados pelas pedrinhas valeu à pena. A partir dessa experiência, perderia por completo o medo de andar de bicicleta, tornando-me exímia ciclista, participando de corridas e porfias, vencendo quase sempre.
Aos doze anos, Aymoré era o terror das professoras. Que o digam as professoras Maria Quitéria no Odorico Mendes e Terezinha Leite Guterres na Escola Paroquial. Os emissários com bilhetes para
papai eram freqüentes, contando as proezas do mano. Papai, então, mandava-o apanhar o rebenque feito de couro cru, ensebá-lo e só então lhe aplicava o devido corretivo.
Papai apesar de amá-lo não lhe dava refresco, talvez, até por importar-se tanto com o seu futuro. Não o mimava: de manhã cedinho, Zé Alvim se punha na janela, inspecionando a varreção da calçada a cargo de Aymoré. Os transeuntes, a caminho do mercado ou da igreja, ficavam indignados com essa forma do pai disciplinar o filho, ensinando-o, também a ser obediente e sem orgulho. E olhem que na nossa casa, entre cozinheira, lavadeira, arrumadeira, agregados e aderentes havia de 8 a 10 pessoas, até jardineiro.
Aymoré sempre foi curioso. Perguntava tudo e a todos; quando ele passava pela nossa rua os vizinhos fechavam portas e janelas, para evitarem as perguntas, cujas respostas não sabiam, do filho de Zé Alvim.
Aos 11 anos nosso pai achou que era hora do seu primogênito aprender um ofício: nada de ficar de bobeira durante as férias, pois os livros que ele nos comprava não nos seguravam mais em casa. Éramos ativos demais para a sua idade, aos sessenta anos. Aymoré foi inicialmente soprar fole na oficina do seu compadre Demetrinho Ramalho; nas férias seguintes a oficina escolhida foi a do sapateiro José Pedro Amengol, onde passava as tardes batendo sola. Depois foi a vez do aprendizado de barbeiro com o seu amigo José Costa de quem era cliente. Para Moema, prendas domésticas: renda de almofada, bordados à mão com Doninha do Seu Leude, coletor estadual.
Após a morte de papai, em dezembro de 1952, o meu parceiro de brincadeiras e estripulias (já ia esquecendo os trapézios, balanços e escorregas) foi para o Seminário Santo Antônio, em São Luis, para preparar-se para a ordenação.
Em 1957, com o curriculum enriquecido por outras atividades como a poesia, teatro, até canto e oratória. Aymoré descobriu que não tinha vocação sacerdotal e deixou o Seminário. A fama de conquistador veio dos tempos de seminarista, aliando a pinta de galã com o charme de saber Latim. As alunas pululavam em casa para desespero de mamãe.
Nessa época ocorreu uma pane no velho motor a diesel e a cidade passou uns bons dois anos às escuras. O vigário da paróquia, o saudoso Pe. Luiz Zecchinato providenciou energia para funcionamento da nossa eletrola, desde que custeássemos a fiação. E assim foi feito. Nas férias os jovens se reuniam lá em casa e até que mamãe os pusessem porta a fora, dançávamos os boleros tocados por Irany e seu conjunto, as canções latino-americanas na voz de Nat King Cole, mambos, rumbas, sambas.
Fizeram parte desse grupo os primos Tinche e Lauro, os irmãos Leite Jurandy, Leitinho e Erasmo, os irmãos Durans Darly, Niedja e Danilo, as irmãs Castro, nossas primas, Maria Helena e Socorro, os irmãos Santos José Maria, Maria Alice e Delfina, Flory Moraes, Edméa Carvalho, Cristina Rocha, Sofia e Cindoquinha Castro, Eldonor Cunha, Ernaldo Peixoto, Ary Abreu, Ribamar Martins, Capitão (João Leite) e Florêncio Ferreira, estes últimos um pouco mais velhos do que nós. Muitos desses parceiros de tertúlias são nossos amigos até hoje, alguns comadres e compadres, confrades na APLAC, mas alguns já faleceram.
Após sair do Seminário, Aymoré estudou no Colégio São Luís do Prof. Luiz Rego, onde além de estudar participava de shows, cantando. Também cantou várias vezes em programas de calouros das Rádio Timbira, sendo algumas vezes gongado, porém na maioria deles levava para a pensão da Tia Celsa, onde morava, pacotes de café, sabão e outros prêmios distribuídos pelos patrocinadores.
Já me alonguei bastante. A memória ainda é boa, mas satura quem não participou dessa quadra da nossa vida. Em outra oportunidade contarei o resto.
Só queria deixar, neste texto, patenteada a minha gratidão ao mano por ter aceitado substituir-me na cadeira de Parasitologia, quando saí para fazer o curso de mestrado na UFMG, imprescindível para deslanchar a minha carreira como docente e pesquisadora na UFMA e desculpar-me por desviar as suas atividades profissionais, de médico obstetra para professor de Parasitologia, exercendo esse mister por 40 anos. Nesse período exerceu por oito anos a chefia do Departamento de Patologia, foi chefe de gabinete no reitorado do prof. Aldy Melo, Pró-Reitor de Graduação. Um dos idealizadores e fundadores da Fundação Sousândrade, fundou, também, a Sociedade de Parasitologia e Doenças Tropicais do Maranhão e juntamente com a sua esposa, também professora Dra. Maria Augusta Brahuna Alvim e sua irmã Moema, desenvolveram várias pesquisas em Esquistossomose, Verminoses e Leishmanioses. Após a aposentadoria, fundou a Sociedade Maranhense de História da Medicina, que congrega médicos especializados em várias áreas e interessados em estudar e deixar para os sucessores os seus conhecimentos e o início das várias especializações da Medicina no Maranhão. Também é membro atuante do IHGM, da Academia de Medicina e membro fundador e Secretário Geral da APLAC.

2 comentários:

  1. UM TECTO DELICIOSO, COM CENAS QUE NOS TRANSPORTAM PARA A ÉPOCA ONDE A NARRATIVA REFLETE COM EXATIDÃO OS FATOS E MOSTRA QUE ALÉM DE GRANDE MESTRE, VOCÊ É UMA EXÍMIA HISTORIADORA E DONA DE UMA MEMÓRIA PRIVILEGIADÍSSIMA. FOI BOM SABER QUE DR. AYMORÉ TAMBÉM FOI UM JOVEM TRAQUINA.

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  2. Excelente, Moema! Como tudo o que fazes! Parabéns aos dois irmãos, parabéns a toda família Alvim! Abraços

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